terça-feira, 13 de outubro de 2009
STJ: Sentença estrangeira. Mudança de sexo.
SENTENÇA ESTRANGEIRA Nº 2.149 - IT (2006/0186695-0) REQUERENTE : F F DA S ADVOGADO : MARIA CÉLIA DE ARAÚJO DECISÃO Vistos, etc. 1. F F da S formulou pedido de homologação de sentença estrangeira, proferida em 23/03/2006 pelo Tribunal de Gênova, Itália, que determinou a retificação da atribuição do sexo na certidão de nascimento e a mudança do nome, após a realização de cirurgia para mudança de sexo. O requerente juntou aos autos a documentação necessária: procuração (fl. 4); cópia autenticada do inteiro teor da sentença homologanda (fls. 19/30), devidamente chancelada pelo consulado brasileiro em Milão (30-verso) e respectiva tradução (fls. 15/19); a prova do trânsito em julgado (fl. 47). O Ministério Público Federal, na pessoa do Subprocurador-Geral da República Edson Oliveira de Almeida, opina pelo deferimento da homologação (fls. 53/58). Decido. 2. A jurisprudência brasileira vem admitindo a retificação do registro civil de transexual, a fim de adequar o assento de nascimento à situação decorrente da realização de cirurgia para mudança de sexo. Conforme consignado no parecer ministerial, nesse sentido há acórdãos proferidos por vários Tribunais pátrios, dentre eles os Tribunais estaduais de Pernambuco, Amapá, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, sendo proveniente deste último decisum prolatado na Apelação Cível nº 165.157-4/5, Relator Desembargador Boris Kaufmann, julgada em 22/3/2001, do qual se extraem os seguintes excertos: "É verdade que essa desconformidade entre o prenome e o aspecto físico somente surgiu em razão das modificações provocadas pela cirurgia plástica e pela forma do autor se vestir e agir no meio social. Mas, como salientou a magistrada citada, 'manter-se um ser amorfo, por um lado mulher, psíquica e anatomicamente reajustada, e por outro lado homem, juridicamente, em nada contribuiria para a preservação da ordem social e da moral, parecendo-nos muito pelo contrário um fator de instabilidade para todos aqueles que com ela contactassem, quer nas relações pessoais, sociais e profissionais, além de constituir solução amarga, destrutiva, incompatível com a vida' (transcrição de Antonio Chaves in 'Direito à vida e ao próprio corpo', 1994, pág. 160). Portanto, ainda que não se admita o erro, não se pode negar que, com o aspecto hoje apresentado pelo autor, o prenome 'Adão' o expõe a ridículo, autorizada a sua modificação pelo art. 55, parágrafo único, combinado com o art. 109, ambos da Lei n. 6515, de 31 de dezembro de 1973, inexistindo qualquer indicação de que a alteração objetive atingir direitos de terceiros. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o prenome 'Lucimara' para se identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguida do sobrenome familiar. A alteração da indicação do sexo necessita exame mais cuidadoso. (...) omissis Como o erro no assento não existiu, em princípio a alteração não seria possível. No entanto, não se pode ignorar a advertência feita pelo magistrado Ênio Santarelli Zuliani, em brilhante voto vencido proferido na Apelação Cível n. 052.672-4/6, da Comarca de Sorocaba: 'Como a função política do Juiz é de buscar soluções satisfatórias para o usuário da jurisdição - sem prejuízo do grupo em que vive -, a sua resposta deve chegar o mais próximo permitido da fruição dos direitos básicos do cidadão (art. 5°, X, da Constituição da República), eliminando proposições discriminatórias, como a de manter, contra as evidências admitidas até por crianças inocentes, erro na conceituação do sexo predominante do transexual'. E, mais adiante, aludindo à dubiedade existente no portador da síndrome de identidade sexual, acrescenta: 'A medicina poderá aliviar o peso da dubiedade, com técnicas cirúrgicas. O Estado confia que o sistema legal é apto a fornecer a saída honrosa e deve assumir uma posição que valoriza a conquista da felicidade ('soberana é a vida, não a lei', Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, in 'O aprimoramento do Processo Civil como pressuposto de uma justiça melhor', AJURIS 57/80), quando livre da ameaça de criar-se exceção ao controle da paz social'. A tendência que se observa no mundo é a de alterar-se o registro adequando-se o sexo jurídico ao sexo aparente. O jornal 'EI Mundo', edição de 18 de março de 2000, anunciou: 'Um juez ordena el cambio de nombre del primer transexual operado por la Seguridade Social'. Embora a manchete aluda apenas à mudança do nome, a alteração envolveu também o sexo, esclarecendo que o Juizado n. 21, de Primeira Instância de Sevilha - Espanha, ordenou a alteração do nome e do sexo de Suzana G. G., o primeiro transexual operado na Espanha pela Previdência Social, acrescentando: 'La sentença recoge que há quedado debidamente acreditado que Susana, antes Antonio, há 'assumido y ejercitado desde su infância roles claramente femeninos', que solo se han manifestado em su comportamiento, relaciones, o forma de vestir, sino que incluso lé llevaron a 'intentos de mutilación por la adversion y repugnância que sentida hacia sus órganos genitales masculinos, existiendo uma disociatión entre tales órganos y sus sentimientos' (...) Já na Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, afirmava-se que a dignidade é inerente a todos os membros da família humana. E a Constituição em vigor inclui, entre os direitos individuais, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (art. 5°, X). Reside aqui o fundamento legal autorizador da mudança do sexo jurídico, pois sem ela, ofendida estará a intimidade do autor, bem como sua honra. O constrangimento, a cada vez que se identifica, afastou o autor de atos absolutamente normais em qualquer indivíduo, pelo medo da chacota. A busca da felicidade, que é direito de qualquer ser humano, acabou comprometida. Essa preocupação é que levou esta 5ª Câmara de Direito Privado a admitir a alteração do nome e do sexo no assento de nascimento de H. D. B., também transexual primário. Afirmou o acórdão - que curiosamente manteve a indicação de 'transexual' como sendo o sexo do registrado - que "não se pode deixar de reconhecer ao autor o direito de viver como ser humano que é, amoldando-se à sociedade em que quer fazer parte. E não quer viver o autor como marginalizado, como discriminado, num estado de anomia e anomalia. Ele quer simplesmente merecer o respeito de sua individualidade, de ser cidadão, um indivíduo comum' (Apelação Cível n. 86.851.4/7, de São José do Rio Pardo, reI. Des. Rodrigues de Carvalho). E tem levado o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao mesmo caminho (RTJRGS 195/356; Apel. Cível 59517893, reI. Des. João Selistre, julgado em 28/12/95 pela 3ª Câmara Cível (...).” Na hipótese dos autos, consoante a tradução oficial de fl. 17, está assinalado na sentença homologanda que, considerando os resultados da instrução realizada, "estamos perante um caso típico de transexualismo de homem para mulher em pessoa já socialmente inserida como mulher, com a conseqüência que 'o tratamento cirúrgico de adaptação da soma parece útil e necessária com o objetivo de dar ao interessado uma identidade de gênero que lhe permita resolver a grave dicotomia em sua personalidade, com a possibilidade de garantir-lhe uma vida mais serena e de favorecer sua integração social em sintonia com sua tendência natural.” Tal fundamentação coaduna-se, portanto, com a orientação traçada pela jurisprudência pátria, revelando-se, assim, razão suficiente a ensejar o acolhimento da pretensão deduzida na peça exordial. Dessa forma, restam atendidos os pressupostos indispensáveis ao deferimento do pleito; além do mais, a pretensão não ofende a soberania, a ordem pública ou os bons costumes (art. 17 da LICC c/c arts. 5º e 6º da Resolução/STJ nº 9/2005). Posto isso, homologo a sentença estrangeira. Expeça-se a carta de sentença. Brasília, 04 de dezembro de 2006. MINISTRO BARROS MONTEIRO Presidente (Ministro BARROS MONTEIRO, 11/12/2006)
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Quem sou eu
- Prof. Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima
- Professor de direito civil e direito do consumidor da UFPI. Advogado.
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